Há muitas versões da história da sopa da pedra. Há as que têm como protagonista um padre malandro, as que têm um grupo de vadios, uma família...
Há as que se passam numa quinta, numa casa, num lugar indefinido...
E há histórias com este conteúdo desde a Europa oriental até à Irlanda.
Eu prefiro esta que, na minha opinião, melhor ilustra a ideia de "ir construindo", colaborativamente:
"Um frade que andava em peregrinação, ao fim de um longo dia, chegou, faminto e cansado, a uma aldeia.
Calcorreou a aldeia pedindo comida. Sem sucesso. Exausto, sentou-se num poial, junto à porta de uma casa, e apanhou do chão uma pedra.
Laboriosamente, limpou a pedra com a aba do hábito, mirando-a de vez em quando, soprando alguma poeira mais teimosa, até que a curiosidade do dono da casa não lhe permitiu resistir mais e perguntou porque é que o frade estava a limpar, tão cuidadosamente a pedra.
— Esta pedra, meu filho, vai dar uma bela refeição. — respondeu o frade.
— Essa pedra? — inquiriu, jocoso, o aldeão.
— Esta pedra sim! — retorquiu o frade, acrescentando — Claro que cozida ficava melhor. Mas não tenho panela. Nem água.
— Ó homem. Isso arranja-se já. — e o aldeão, curioso, foi buscar uma panela com água.
O frade limpou as últimas poeiras da pedra e mergulhou-a, cautelosamente, na panela murmurando — Ao lume era mais rápido.
Entretanto alguns vizinhos foram-se acercando porque, convenhamos, este não era um cenário comum. Um dos vizinhos prontificou-se a trazer alguns ramos que tinha trazido da floresta para pôr à lareira essa noite e acendeu o lume debaixo da panela.
O frade comentou, então — Esta sopa já começa a cheirar bem. Com uma batata e uma cenoura... isso sim, era uma maravilha. Mas não tenho.
Quase por milagre, um outro vizinho apresentou uma mão cheia de batatas e a sua mulher trouxe um par de belas, longas, cenouras.
O frade agradeceu a gentileza, descascou-as e juntou-as à água que já começava a aquecer.
Passado um tempo, o frade comentou — Já começa a parecer-se com uma sopa. Melhor... só com umas folhas de couve.
E outro vizinho foi, a correr, buscar umas folhas de couve. Tinham um belíssimo aspeto, apanhadas nessa manhã, iam ser parte do jantar lá de casa. Mas a curiosidade precisava de alimento, também.
Alguém exclamou — Eu, por mim, metia aí dentro uns feijões. — e dizendo isto, foi a casa buscar uma tigela com feijões que tinha deixado de molho para o jantar.
O frade acrescentou os feijões à sopa e, passados mais uns minutos perguntou — Já provaram uma sopa da pedra com toucinho?
Nunca ninguém tinha provado uma sopa da pedra, nem com, nem sem toucinho. Mas alguém foi buscar um naco. Nesta altura já se tinha junto um grupinho numeroso e ninguém queria parecer menos generoso. Uma vizinha trouxe uma linguiça, já cortada, e alguém apareceu com uma orelha de porco fumada.
Conversa puxa conversa e, com o passar do tempo, a sopa já cheirava mesmo bem.
A dada altura alguém disse — Acho que já provava essa famosa sopa da pedra.
E apareceram, nesta altura já não dava para perceber de onde é que vinham as coisas, malgas e colheres. Até uma garrafa de vinho.
O frade serviu a sopa e partilhou do pão que, ainda quente, surgiu, como tudo o resto, de mais uma generosidade anónima.
Depois de todos saciarem a fome e a curiosidade (a sopa da pedra era, mesmo, boa!) alguém perguntou — E a pedra?
Depois de um momento em silêncio, o frade limpou a pedra, meteu-a na sacola e disse — Acho que esta pedra ainda vai dar de comer a muita gente."
Bom... quem conta um conto acrescenta um ponto, e eu não sou exceção.
Como sopa, e sem desrespeito por outras regionalidades, recomendo a interpretação de Almeirim.
As “Produções sopa da pedra” pretendem ser, exatamente, o que a sopa acima descrita foi nesta estória: uma construção coletiva, espontânea, generosa e imprecisamente planeada.
Ninguém foi responsável pelo sucesso da sopa, o frade ficaria com uma barrigada de fome sem os contributos de todos, mas nenhum foi determinante nem teria sequer contribuído sem a iniciativa do frade. O sucesso foi construído, como (quase) sempre, por todos, coletiva e colaborativamente.
Vasco Carrilho, agosto de 2023